sexta-feira, 20 de novembro de 2009

escapatória ii.

o revamp do escapatória que ganhou a batalha de gladiadores entre textos para ir até à coca-cola passar umas férias é este:

Os autocarros passam um por um, quase ininterruptos, na paragem. Vejo-os ir e partir ao longe mas ainda nenhum me intrigou realmente - os lugares para onde vão são silenciosos e discretos, e eu estou à espera de um que me acene, de um que pestaneje sedutoramente do sinal luminoso que o anuncia.

A noite na cidade, escura e fria, é quebrada por luzes suaves que deslizam umas através das outras. As esquinas despem-se delicadamente diante dos faróis dos automóveis, nas ruas desertas as sombras diminuem e crescem com a nossa aproximação e afastamento.

Passo depressa pelas esquinas como se fugisse do nascer do sol, de mãos bem enterradas nos bolsos e os ombros rígidos contra o frio, as ruas geladas debaixo dos pés, uma após outra após outra. Se seguirmos durante tempo suficiente por uma rua, podemos ir até onde todas as ruas paralelas do mundo se unem num ponto de fuga secreto. É sossegado - os outros que lá chegam também não querem falar com ninguém. É a única razão pela qual alguém andaria tanto tempo em linha recta sem parar para... para ficar.

Não quero ficar no mesmo sítio. Respiro para dentro do cachecol para aquecer os lábios e o pescoço, não quero que o meu sangue pare de correr mas ir para casa está fora de questão. Estou farto desta cidade em que todas as ruas vão dar ao mesmo sítio, e já as percorri a todas muitas vezes, a horas diferentes em diferentes alturas do ano, conheço-lhes bem as manias. Sei onde há pedrinhas manhosas, passeios tortos, candeeiros de rua esquizofrénicos, onde passam os passadores de droga e onde se passam os artistas de graffiti às quatro da manhã, a pintar as crianças esfomeadas de áfrica numa explosão de rabiscos a preto e branco, sob a luz clandestina dos néons.

Mas à noite, no inverno, quando as ruas são minhas, numa zona obscura de sonho, preenchida apenas por nevoeiro e pela minha silhueta escura, posso fingir que estou a ir para outro sítio. Quando está mesmo frio ando com as luvas mais grossas, com o cachecol até ao nariz e com o gorro até às sobrancelhas, mas não fico em casa, porque ficar em casa seria desperdiçar a oportunidade maravilhosa concedida pelas nuvens, a oportunidade de pensar que vou para outro lugar.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

concurso de escrita

O José Luís Peixoto é o único júri neste concurso da Coca-Cola para jovens escritores. O limite é 2500 caracteres e tenho algumas coisas já escritas dentro deste limite... O prazo termina sexta-feira dia 20 e não tenho a certeza se alguma destas coisas é interessante o suficiente, devo tentar escrever outra coisa.
De qualquer forma estas são as hipóteses (esta lista poderá ou não ser actualizada se eu escrever alguma coisa):

Joie de Vivre
BOLD (isto valerá?)
Frame of Mind (este passa por tipo 200 caracteres ou isso)
des-significativo
escapatória

O único para que estava mais inclinada era este penúltimo mas não sei qual é o nível esperado numa competição deste género.
O Mário já participou, boa sorte a todos nós.
EDIT: O Tóni também já enviou a participação.

ps: eu sei que há gente que lê este blog porque tenho um contador de visitas e sei bem que as visitas não são todas minhas, seus fantasmas!

sábado, 14 de novembro de 2009

a era moderna

a era moderna é pouco poética
cheia de ruídos artificiais.
as noites tão brilhantes como os dias
os dias tão fechados como as noites.

de uns para os outros trocamos olhares calados,
tímidos, desviados, atravessados por entre
a multidão fervilhante no metro.

folheamos revistas de páginas magras
no consultório do dentista onde
nos esquecemos das dores psicológicas.

rebolamos nas passagens de peões,
zebradas através do asfalto quente,
perigosas à sua maneira muito própria.

rostos vazios detêm-se nas montras
de cores vibrantes em vidas a preto e branco
sem os olhos brilhantes da audrey no sabrina.

'sonha,' pedem os semáforos, piscando,
'sonha por favor, enquanto o vento se lançar
em voos rasantes pelos teus cabelos.'

há muitas coisas que partilhamos
com os nossos antepassados
que ultrapassam o plástico e o aço inoxidável.

os dedos das nossas mãos industriosas
os passos lentos de quem não tem destino
os sonhos escondidos atrás da orelha
e o vento
lançado
em voos rasantes pelos nossos cabelos.

pára de sofrer

pára de sofrer, sofia,
deixa-te de ler os clássicos
que terminam sempre em morte ou casamento
(ambos tristes à sua maneira
muito particular e igualmente
trágicos e finalizadores).

abre bem os olhos, sofia,
enche-os de coisas bonitas
como os pássaros e as borboletas
e esconde na noite as sombras
que te apoquentam a alma
ao acordares.

deixa os pesadelos no armário
onde escondes os teus outros segredos
(um diário com fechadura de plástico,
uma cassete do pretty woman
e os restos mortais de uma folha vermelha)
e não te esqueças de fechar a porta
à noite antes de dormir.

faz pouco barulho, sofia,
para não acordares os teus demónios.
quando eras pequenina e eles estendiam
garras fantasmagóricas sobre ti,
os lençóis brancos eram o teu escudo
glorioso e ardente.
mas agora, enrolada,
abraçando silenciosamente os joelhos,
nenhum edredão te protege
dos teus fantasmas muito pessoais
(enroscados contigo na cama,
com os braços frios passados
sobre o teu corpo esguio).

deixa de sofrer, sofia,
a noite não dura para sempre
nem pode assombrar as horas de luz.
esconde-te enquanto for dia
nos raios de sol nos parapeitos das janelas
(podes aprender a estender-te
com os gatos, que o fazem bem)
e ao cair a noite vai andando para leste
à velocidade da rotação da terra
(mil quilómetros por hora no equador)
e o pôr-do-sol nunca te vai apanhar.

escondes-te assim daquilo
que te persegue das sombras,
um bom conselho mas covarde.

a melhor opção, sofia,
é parares de sofrer não fugindo
mas travando e deixando
que os teus males te atravessem
como atravessa os teus ossos
o vento gelado do evereste.

fica quieta, sofia, e repousa,
a sarar as feridas mas deixando-as doer
pois essa dor verdadeira nunca será tão grande
como a dor de esperar que a dor nos atinja
num relâmpago inesperado.
a verdadeira dor é sempre menor
do que a expectativa de uma dor imaginária
coberta de sal e de pedaços de areia
em feridas que nunca realmente abrimos.

por isso esquece, sofia, esquece.
é a única maneira
de realmente perdoar.
mete as unhas postiças
e vai dançar pela noite fora,
deixa a penumbra dos candeeiros de rua
guiar os teus passos
até casa.