quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

torres

inspirado por este post no Cogito Ego Sum.

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o esquecimento parece ser a única forma
de respeitar as nossas memórias.
as fachadas dos edifícios e as ruas calcetadas
dissolvem-se umas nas outras,
tornam-se mais vagas e, ao mesmo tempo,
crescentemente belas.

a simplificação do mundo surge
como uma necessidade,
um pretexto para nos sentirmos muito melhores,
como se fôssemos mais humanos
por transformarmos aquilo que vemos
à luz da nossa perspectiva inovadora
e, em muitos sentidos, absolutamente aterrorizada.

nos viadutos sobre as nossas cabeças
e nos túneis debaixo dos nossos pés,
a apologia da velocidade,
um grito futurista de libertação detestável de tudo o que foi
princípio ético duradouro através das eras.

rodopiam todos ao redor das nossas cabeças,
os rápidos, os fortes, os altos,
a torre de babel de um novo mundo, cada vez mais gigante,
a tentar meter mais espaço
entre os pés e o chão,
a torre sears, as torres petronas, e mesmo o world--
o world trade--
o world trade center.

tratamos com respeito
as nossas recordações individuais e colectivas
com o esquecimento gradual de perder o medo
ao metropolitano e aos aviões
e escondemos o terror dentro de nós
onde só nós podemos vê-lo,
assim vale menos.

damos as mãos na escuridão porque
uma ilusão da PIDE nos persegue ainda
com as mãos postas nos olhos a fazer de binóculos
à procura dos mais ferozes violadores e das mentes mais perversas
para prender para guardar a inocência do estado.

inocente, o estado
sentou-se ao cimo da torre vasco da gama
a ver e a chorar
o terror que tem por dentro.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

promtps

prompts:

lápis e persiana
Os seus dedos escorregavam por onde a tinta descaíra das paredes, na penumbra das persianas corridas que trancava o dia lá fora. Pedia a muitos deuses para não estar sozinho, só pelo bem de ter alguém que testemunhasse a sua desgraça, alguém que se recordasse dele como mais do que um grupo de dentes que tinham roído lápis e um conjunto de ossos que se tinham desgastado a pouco e pouco. Imaginava que, milhares de anos mais tarde, um arqueólogo curioso encontraria as suas ossadas e tentaria imaginar como teria vivido, sem saber que ele não tinha vivido de todo.

luvas e televisores
Chegar a casa era a melhor parte do dia - quando podia esquecer-se do mundo estéril das paredes brancas e do cheiro limpo ao fantasma da morte a passear-se nas esquinas do lar de idosos. Tirava as luvas de látex e ficava sentada no sofá a respirar as flores nos vasos, à espera de uma família qualquer que lhe entrasse pela porta para encher a casa de barulho.
Entretanto e toda a noite, repetições do Preço Certo em Euros e outros programas inúteis na RTP.

palavrões
"Anda lá, sabes que te queres sentar na minha mota."
"Desde que a vi."
Ele tinha outro capacete, que era branco e nada rock-and-roll, metido na traseira. Ela pô-lo como se fosse um toucado de faraó e alçou a perna por cima da motocicleta.
"Isto não é tão épico como eu pensava que fosse."
"Isso é porque ainda nem sequer começámos."
Cinco minutos depois, de braços esmeradamente apertados ao redor da cintura dele, ela dizia os piores palavrões que já tinha ouvido mas dava graças pela oportunidade de cheirar, de tão perto, aquele blusão de cabedal.

tremoços e deus
A verdade era que não havia muito dinheiro em ser dono de um café de esquina. A única vantagem eram os amigos - os regulares que apareciam todos os domingos de jogo e mandavam vir o prato de tremoços e o fino cheio de espuma a que os filhos encostavam os lábios para experimentar. Os amigos que se sentavam sempre na mesma mesa e debatiam política mesmo sem saber nada do parlamento e sem ter votado na última eleição. Atrás do balcão a arrumar a loiça, não pôde deixar de sorrir: lá estavam eles, como sempre, a discutir religião - ou seja, qual das beatas era a mais bonita.

metafisicamente e extremamente
A neve caía de novo e deu por si acordado a ouvi-la bater no parapeito. Calçou as galochas e preparou-se para mais uma manhã a limpar gelo da entrada da garagem.
"Fuck."
"O que foi," grunhiu ela de entre os lençóis, ainda presa no estupor do sono.
"Já venho," respondeu. "Já venho."
Por alguma razão sentiu-se tentado a sair pela janela da cozinha - talvez para provar a si próprio que conseguia fazer algo diferente a cada dia.
Entretanto, sem que ele se apercebesse, noutra parte do mundo, começava a primeira (e última) guerra nuclear.

escadas e anis
O vão das escadas trazia-lhe milhares de recordações de infância - onde se reuniam os amigos n'Uma Aventura, onde dormia o Harry Potter em casa dos tios malvados. O do seu prédio era triste e solene, marcado apenas pelo momento em que trouxera para baixo uma caixa cheia de cortinados esburacados para dar de caras com os vizinhos do segundo andar a desfrutar de uma afternoon delight.
Agora esconde lá o álcool e, com mais anís que sangue nas veias, atira-se sobre a máquina de escrever que foi roubar à arrumação - não vale a pena viver nas metrópoles se não for para escrever os romances atabalhoados dos viciados.

bazar e viro-me
Odeio estas lojas de cidades pequenas, com as portas baixinhas e as prateleiras encavalitadas umas nas outras, a vender as porcarias mais inúteis nos expaços mais exíguos - de cada vez que me viro estou a espetar uma cotovelada nalguma coisa que vai a rodopiar até ao chão.
Só queria encontrar o amor num destes bazares, e é por isso que continuo a vir, mas começo a ficar com os braços todos pisados e com a carteira mais vazia de pagar tudo o que parto. Quanto é que se paga para encontrar um Fred Astaire ou Paul Newman com o charme antigo a preto e branco?
Vai daí também servia um carpinteiro ou um electricista. Desde que me oferecesse flores.