quarta-feira, 29 de abril de 2009

Ce Soir J'Attends

Se lhe pedissem, Madeleine saberia enumerar os comboios em que já tinha entrado e saído para chegar ao sítio onde estava – num dia bom. Num dia mau, saía do comboio, sentava-se na borda de um banco da estação e deixava-se estar a ver passar os destinos intermináveis e todas as vidas diferentes que perdia.
Madeleine era uma rapariga de ambições – mas não tinha sido, na sua vida, uma rapariga de riscos, e as duas são necessárias uma à outra. Enquanto que uma vida de risco sem ambição é um pouco uma fantasia suicida, a ambição sem o risco tem outro nome: sonhar acordado.
Toda a vida, Madeleine tivera o cabelo muito comprido e liso. Não era porque lhe ficasse particularmente bem, não era uma preferência pessoal, mas era aquilo que ela conhecia, tal como comia sempre o mesmo sabor de gelado e só ia ver filmes ao cinema se tivessem actores de que ela gostasse. Tinha medo da desilusão como os lobos têm medo ao fogo – ela já vira o terror que causava nos outros, e preferia não lhe dar a oportunidade de a queimar a ela.
Jean-Luc sabia estas coisas acerca dela, e era por isso que trazia sempre para casa a mesma pizza, que lhe comprava sempre lilazes e que a levava sempre a jantar fora no “Eugéne”. Ele sabia aquilo de que ela gostava, e mantinha-se fiel a esses parâmetros de todas as vezes.
Quando acabou o liceu, Madeleine espalhou na cama os papéis de todas as universidades e cursos que lhe interessavam: Belas Artes em Paris, Paleontologia em Bordeaux, Química em Marseille. Cada papel era um sonho, uma vida diferente para Madeleine. Tudo isso a fascinava e assustava.
Nos dias antes de matrícula, andou como alma penada pela casa, a arrumar e a pensar, longos cabelos apertados num elástico. Ora se via a pintar nas margens do Seine, com uma vida simples numas águas-furtadas (e oh! usaria chapéus coloridos e talvez aprendesse a tocar acordeão, para cantar num bar escuro às terças-feiras por dinheiro nenhum), ora a dar uma palestra na universidade, e voltar para uma grande casa suburbana (é o Jean-Luc na varanda?, ou será um jovem escritor chamado Vincent, que publicou romances negros, e Madeleine faz escalada, canoagem, tem quatro golden retrievers—não, dois gatos—não, um filho, pequeno, louro como o Vincent).
Após muita deliberação, Madeleine foi cabisbaixa à escola inscrever-se no politécnico da sua vila. Era onde ia ficar o Jean-Luc – ele queria ser mecânico e ficar com a oficina do pai no centre-ville. Eram os sonhos dele, e Madeleine conseguia ver-se neles, um reflexo esfumado e distorcido de quem era, mas ela sabia que se podia habituar (e via uma casinha com duas varandas, férias modestas com praia e um par de aventais pendurados atrás da porta da cozinha).
O seu primo Gaspard foi quem a lançou num girar de pião de que ela não saberia voltar a parar. Veio da Inglaterra com ideias loucas que desmoronavam as fundações de Madeleine, de sítios para além da realidade fechada a que ela se confinara, de oportunidades que estava a perder. “Enquanto não decides entre as tuas possibilidades,” dizia-lhe ele, “pensas que tens possibilidades infinitas, mas, na verdade, não tens nenhumas. Cada dia que ficas no politécnico estás a deitar mais pela janela.”
Um pouco engasgada, Madeleine começou: “Mas o Jean-Luc—”
Gaspard disse-lhe que Jean-Luc não a merecia. Madeleine não concordava.
Nessa noite, Jean-Luc levou Madeleine pela mão através do cheiro familiar de uma rua húmida depois da chuva, para irem ao cinema. Mas no escuro, com o nariz de Jean-Luc suavemente pousado no seu cabelo e ouvindo os seus sussurros de amor, o rosto de Madeleine estava rígido e inexpressivo, olhos bem abertos, fixos no ecrã, a ver tomar lugar aventuras que temia nunca viver.
Agora, sentada na paragem junto aos comboios que passavam, a ver andar pessoas em pares e sentindo o frio da noite começar a envolvê-la, Madeleine sonhava com o calor do cinema e das mãos desajeitadas de Jean-Luc.
A despedida fora amarga e sem sentido. Lembrava-se bem dos olhos castanhos de Jean-Luc, confusos e traídos, enquanto Madeleine andava de um lado para o outro no quarto a atirar as suas coisas para uma mala grande e vermelha. Ela falava-lhe do que dissera o Gaspard, distraída e sonhadora, de como ia ver Paris e Biarritz e Zurich – ia perder os sapatos em Vienna e fazer amigos a tentar encontrá-los. Entretanto, Jean-Luc olhava-a de longe, como se pela primeira vez a visse, encostado à parede com as mãos nos bolsos.
Quando ele saiu, Madeleine viu-o limpar o rosto ao pano cansado, manchado de óleo que trazia no bolso. As suas lágrimas, ele sempre as escondera atrás de determinação e de tijoleira quebradiça.
O seu único sinal de emoção foi, assim que chegou ao lado de fora da porta e sabia que Madeleine não o via, uma violenta pancada na parede. Madeleine realmente não o via, mas ouviu-o. Acabou de fazer a mala com um semblante paciente, e os sonhos que tinha para a viagem afastaram-lhe o nó na garganta – eram as mãos de um velho marinheiro a desapertar as amarras do seu navio.
Quando acabou de arrumar os livros, os jeans e os sapatos vermelhos que nunca usava, Madeleine ficou em pé à frente do espelho da casa-de-banho com uma tesoura, e viu a pouco e pouco cair as suas madeixas castanhas no lavatório.
À janela do comboio para sair da vila, Madeleine pensou ter vislumbrado Jean-Luc, um ramo de lilazes na mão ligada, a entrar esbaforido na estação, antes de ser afogado pelo apito do comboio e pela multidão. Convenceu-se de que não era mesmo ele, para que não lhe doa à noite.
Madeleine viu Paris das janelas de autocarros – sentiu o vento no seu cabelo no cimo da butte de Montmartre, comprou dois ou três quadros na Place du Tertre, tirou fotografias com um sorriso plastificado diante da Torre Eiffel. De tédio, alimentou os pombos dos Champs de Mars com bocadinhos de pizza.
Tudo aquilo de que o Gaspard tinha falado? Existia, Madeleine via-o nas pessoas à sua volta, e às vezes sentia-o mesmo perto de si, sem poder vê-lo em si mesma. Mas afinal, em Vienna perdera inadvertidamente o sapato, e acabara a coxear de volta para o hotel, a pensar nas batatas fritas do “Eugéne” e na sua própria estupidez.
Madeleine sentava-se na estação a ver passar os comboios um a um, às vezes a apitar. Já estava quase sem dinheiro, e às vezes esquecia-se de onde estava. Tinha, porém, vergonha de voltar para casa (sempre que ressoava nos altifalantes o nome da sua terra, era vê-la estremecer e fingir que não ouvira) sem ter visto o que prometera ver, sem ter beijado nenhum poeta e sem se ter perdido em becos de calçada molhada, às mãos do inesperado.
Para acrescentar à humilhação, tinha medo – medo de enfrentar as consequências dos riscos que tinha tomado. Estava já consumida pela desilusão, mas sabia que não o estava tanto quanto ficaria se voltasse, para encontrar Jean-Luc nos braços de uma ruiva fogosa chamada Vanessa, numa casa com duas varandas que era propriedade legítima de Madeleine.
Agora essa sua fantasia – Jean-Luc e um filme, noites passadas a contar estrelas e a conversar, no familiar parque da vila – fazia parte de mais uma batelada de riscos.
Riscos que Madeleine não ia tomar.

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Baseado na canção "Madeleine", de Jacques Brel, que conta a história de um rapaz que todos os dias espera a namorada na estação com um ramo de lilazes, sem ela nunca chegar.
Elle est tellement jolie
Elle est tellement tout ça
Elle est toute ma vie
Madeleine... qui n'arrive pas.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

nós os artistas II

nós os artistas sentimos com mais força
do que as outras pessoas sentem

nós os artistas queremos a liberdade
com mais força do que os outros, mais

nós os artistas gritamos mais alto
ou então sussurramos palavras de ordem
escondidas atrás dos pilares das eras
até à hora de brilharem além, porém, e
com mais força do que os outros, mais

nós os artistas não somos românticos
nem graciosos nem delicados
nem o nosso perfil é de cinzel
nem os nossos olhos pedras
( semi-preciosas metafórico-voltaicas )

o nosso silêncio é apenas aparente
nós os artistas não sabemos fechar a boca

sem ar respiramos pelos olhos quando
nos sufocam em desespero porque
o artista é LIVRE e INSPIRADO
e a sociedade PRESA e INVEJOSA

OS NOSSOS OLHOS SÃO GRANDES
AS NOSSAS MÃOS SÃO ABERTAS
OS NOSSOS PÉS CALEJADOS

o sol é dos artistas porque só eles
sabem para que é que ele serve


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Poema velho redescoberto, com um sujeito poético revoltadíssimo.
Devia estar a ter um daqueles dias difíceis.

esquecido no tempo a 05-04-2008

Música: "Kashmere", Led Zeppelin

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Jai Ho

Post repetida, já que da anterior teve o seu vídeo retirado do YouTube pela Fox Searchlight (infracção de copyright my ass, é mais publicidade grátis).

Celebrando os incríveis dotes do Dev Patel e da Freida Pinto nos créditos do Slumdog Millionaire, com música de A. Rahman.
Não sei quantos mil óscares*, entre eles o de "Melhor Canção Original".

You gotta love it.

*8, mesmo.