sábado, 1 de novembro de 2008

Ne Me Quittes Pas

Os aeroportos tinham para ele um sabor agridoce a despedidas. Demasiadas malas nas mãos de quem não deveria ter malas tinham-lhe ensinado a pressentir coisas daquelas, e naquele dia ele pressentira uma mala. Preta.
Os aeroportos e o portão das partidas davam-lhe nós na garganta e vontade de fumar – uma terrível vontade de fumar.

Ele gostava de discutir. Acerca do casaco de cabedal dela que só sabia atrair os arruaceiros do bairro, acerca do futebol, acerca daqueles malditos sapatos que faziam imenso barulho ao subir as escadas do sótão, acerca do jantar, acerca do hábito maníaco dela de colar post-its nas molduras das portas para se lembrar das coisas.

Os aeroportos eram solitários. Lugares tão grandes com tanta gente desconectada, que quase faziam lembrar um circo no intervalo entre espectáculos. O australiano com o chapéu de lado, sentado a ler um John Grisham com os pés apoiados na mala. As duas japonesas, encostadas ao balcão do café do duty free, com franjas iguais, vozes serenas e botas extravagantes. Uma trupe de cinco turistas americanos, com camisolas às flores e mochilas enormes, caminhando a passos largos até ao portão para a Turquia.

Quando a queniana desaparece, deixa atrás a sombra de uma mãe.
- Ne me quittes pas – sussurra a rapariga morena com a voz húmida.
É terrível ter últimas recordações em aeroportos esterilizados.
- Ne me quittes pas – pede ela de novo.
As despedidas aqui deviam ser ilegais.

- Ami – chama ele, no instante em que ela se vira.
- Sim? – O casaco de cabedal. Ela trouxe-o vestido.
- Ami... Sem ti...
- Sim? – Uma sobrancelha inquisidora.
Ele tosse, pergunta-se por um instante quais palavras é que transmitirão o puro desespero, a garganta entupida, o reflexo estúpido que sentia no estômago, as pernas – as pernas fracas.
- A quem é que eu vou dizer para não pendurar os soutiens nas portas quando tu tiveres—
Partido.
Ela ri-se.
- O que queres de mim, Miguel?
Ele não sabe o que dizer, até que diz aquilo que o seu cérebro esteve a martelar o caminho todo pela semi-circular, a seguir os sinais que indicam a direcção contrária àquela que ele quer seguir.
- Fica.
É quase inaudível.
- Não posso.
É definitivo.
- Amélia – ele engole em seco, engole a boca que parece cortiça, as palavras que ele garante a si mesmo serem empecilhos, e grande parte do seu orgulho. – Eu preciso de ti...
- Não posso.
Repetição – recurso expressivo utilizado para aplicar ênfase numa ideia.
- Não vás.
- Não posso.
Advertência: se em demasia pode tornar-se terrivelmente irritante.
- Ami, porra, eu nunca te faria isto, por que é que—
Depois de ela partir, ele afasta-se a passos largos para a saída, já de cigarro nas mãos a tremer.

A casa era estupidamente arrumada desde aí. As ombreiras das portas eram castanhas, e tinham fantasmas escondidos atrás, daqueles com vozes de discos riscados de vinil.
A última recordação, o último pensamento – deuses o cabelo dela é lindo, mesmo aqui.
Mesmo com este cheiro a despedida.


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Canção -- "Just Like The Movies", Regina Spektor