sexta-feira, 23 de outubro de 2009

iii. o jordão

retirámos a bagagem
das águas tortuosas do estuário.
refugiados,
de fotografia dobrada
no bolso do casaco.


erguemos os olhos para diante
como se o sol nascesse já
(é cedo ainda)
bem no centro do oriente.


as pontes desta cidade
acolhem-nos com delicadeza,
lançadas sobre as águas
num apaziguante suspiro.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

juízos de valor

despe-me porque te pertenço,
procura em mim os meus segredos,
também são teus agora.

sem entraves, existimos apenas,
num lugar onde existir equivale a estar vivo,
sem as partes mais misteriosas e complicadas.

as coisas crescem de nós
como crescem das árvores,
somos criadores de braços bem abertos
para abraçar as coisas mais longínquas,
todas elas nos pertencem
como pertencemos nós a elas.

deixa-me guardar-te em mim
onde sei que posso proteger-te.
fiquemos de pernas entrelaçadas
num local obscuro e preenchido,
onde o espaço vazio não sirva
de ameaça sossegada e deslizante.

esqueço-me de que passam
as noites e os dias,
as estações escorregando
por entre os meus dedos.
com as folhas vermelhas de outubro
ainda entrelaçadas no meu cabelo,
apercebo-me das flores de abril
despontando aos meus pés.

esfrego os olhos com mãos sombrias,
here comes the sun.

noctívagos

a noite, como a tempestade,
colapsa:
manto escuro que lançamos sobre os ombros.

a nossa tradição é silenciosa
os nossos espíritos calados
em reverência a outros espíritos.

como buracos queimados através
do tecido espesso do céu
as estrelas ardem.

à volta da fogueira, esperamos,
toda uma raça em expectativa,
décadas de sonhos.

de rostos fechados, anacrónicos,
partilhamos os nossos pensamentos
com os pássaros apenas.

às vezes esquecemos que os pássaros
não migram para esquecerem onde estão
mas para recordar
os sítios que deixaram.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

escapatória

Passo depressa como se a noite nunca viesse cedo o suficiente, de mãos bem enterradas nos bolsos e os ombros rígidos contra o frio, as ruas geladas debaixo dos pés, uma após outra após outra. Se seguirmos durante tempo suficiente por uma rua, podemos ir até onde as ruas paralelas do mundo se unem num glorioso ponto de fuga. É sossegado, os outros que lá chegam também não querem falar com ninguém: é a única razão pela qual alguém andaria tanto tempo em linha recta sem parar para... para ficar.
Não quero ficar no mesmo sítio. Respiro para dentro do cachecol para aquecer os lábios e o pescoço, não quero que o meu sangue páre de correr mas ir para casa está fora de questão. Estou farto desta cidade em que todas as ruas vão dar ao mesmo sítio, e já as percorri a todas muitas vezes, a horas diferentes em diferentes alturas do ano, conheço-lhes bem as manias. Sei onde há pedrinhas manhosas, passeios tortos, candeeiros de rua esquizofrénicos, onde passam os passadores de droga e onde os artistas de graffiti perdem a cabeça às 4 da manhã a pintar as crianças esfomeadas de áfrica numa confusão de rabiscos. À noite, quando as ruas são minhas numa zona de sonho preenchida apenas por nevoeiro e pela minha silhueta escura, posso fingir que estou a ir para outro lugar. Quando está mesmo frio ando com as luvas mais grossas, com o cachecol até ao nariz e o gorro até às sobrancelhas, mas não fico em casa, porque ficar em casa seria desperdiçar a oportunidade maravilhosa concedida pelas nuvens, a oportunidade de pensar que vou para outro lugar.

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"This is Love" - PJ Harvey

a boneca

Balanceou as ancas pelas ruas poeirentas, por entre as ocasionais trocas de tiros e música de flautim, sacudiu o cabelo quando passava o vento para se poderem fazer bons grandes planos e abriu finalmente de par em par as portas de mola do saloon, deixando-as sacudir um pouco à sua passagem. Os rostos eram os mesmos de sempre – o Jack Rápido, cujas botas tinham umas asinhas secretas e invisíveis encomendadas a um índio; o Dick Gatilho, que tinha o par de pistolas mais obedientes ente Nova Orleães e a Califórnia; o Louie Sem Ossos, tão magro que fugia de qualquer prisão sem precisar de enganar o guarda ou de lhe raptar a chave do bolso. A Boneca lançou beijos a todos com uma boquinha repenicada e cumprimentou os quatro bandidos ao balcão com um gesto de cabeça, ao que eles tiraram os chapéus e sorriram.

Ao bilhar, porém, estava um desconhecido. De costas, ela via-lhe já o lenço vermelho ao pescoço, o colete de pele, as botas altas, tudo tirado do estereótipo do homem do fároeste. Ele olhou por cima do ombro e, retirando o cigarro dos lábios, disse:

- Boneca.

O coração saltou-lhe no peito, fez-lhe estremecer o decote, e as suas pestanas pestanejaram de forma mais epiléptica que sedutora.

- És tu – disse.

Ele manteve um semblante escuro, puxou o chapéu sobre o rosto para alargar a sombra que o cobria e, ignorando o terror que ela demonstrava, perguntou:

- Vai um bilhar?

A Boneca aproximou-se da mesa devagar, cada passo dela um estremecer do salto alto fininho das suas botas, modeladas a partir de um mapa da Itália. Tirou as luvas brancas com um ar determinado e agarrou no taco que o homem lhe entregava.

- O que estás aqui a fazer? – perguntou num sussurro.

Ele pareceu não reparar que ela fizera uma pergunta, estava ocupado a juntar as bolas todas num dos cantos da mesa para poder começar a partida.

- Ouviste? – voltou a Boneca.

Ele ergueu para ela um par de olhos escuros desde a penumbra da aba do chapéu e disse:

- Não fiquei surdo, Boneca, muito menos para ti.

Ela corou como se lhe tivessem aceso uma fogueira debaixo dos pés, e tirou o leque do cinto para se esconder atrás dele.

- Começamos? – voltou ele.

Com um ruído seco, as bolas espalharam-se pela mesa.

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"A Boneca -- uma comédia romântica no fároeste"
dedicada à sara pelos anos dela