segunda-feira, 30 de março de 2009

Retrato de um Noir, Ruiva&Finale

A menina ruiva veste-se sempre de vermelho, por muito que lhe digam que essa cor é para as mulheres da vida. Ela senta-se numa mesa redonda, sozinha, a olhar para o seu reflexo no cinzeiro. Ninguém no bar a conhece muito bem, e a empregada de mesa resmunga para o homem do bar que ela não deixa grandes gorjetas. É estudante, bebe sempre água com gás.
A menina ruiva espia a viúva enquanto ela se vai sentar com o senhor doutor, e encetam uma pequena conversa. O detective dá-lhes um assobio reprovador, mas a menina ruiva acha que só ela é que repara.
Dizem que a viúva matou o marido, mas a menina ruiva acha que não – afinal, os jornais são rápidos em cair em cima das pessoas que se vestem bem e aparecem nas páginas do high-life. A menina ruiva tem sonhos desses – ou talvez de ser astronauta, ou química, como a Marie Curie (a menina ruiva tem uma fotografia dela na carteira, recortada de uma revista da universidade).
A noite começa tarde no Bar às Riscas Pretas, e quando acaba já não é bem noite, de qualquer forma. O homem do bar anuncia a última rodada, mas ninguém a comenta. As sombras sorriem-lhe dos cantos, prometem que um dia se vão voltar a ouvir os saxofones, que as noites vão voltar a ser azul-escuras, manchadas de luz.
A viúva e o senhor doutor saem juntos – o detective toma nota mental do assunto, prevendo já um fim sangrento para o senhor doutor, numa noite quente de Maio.


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Música: "Summertime", Billie Holiday.

domingo, 29 de março de 2009

Retrato de um Noir, Médico&Vigário

O senhor doutor está sentado a uma mesa, a fumar um cachimbo, pensativo e sem falar com ninguém, excepto a empregada de mesa, que passa de vez em quando, com o decote escabroso e os saltos altos, a perguntar se ele precisa de outro conhaque. O senhor doutor tem o consultório instalado no cimo de um prédio de tijolo castanho no centro da cidade. O homem do bar passa lá para os filhos levarem as vacinas – o senhor doutor faz um desconto. O homem da mercearia vai lá comprar os comprimidos da tensão da esposa – o senhor doutor faz um desconto. O carteiro leva o cão porque o veterinário está fechado – o senhor doutor não cobra nada.
O senhor doutor não pagou a renda este mês.
Ainda assim, bebe. É o remédio que lhe ensinaram as décadas, o conhaque, independentemente da faculdade de medicina. E, quando entrara, de olhos brilhantes a querer salvar o mundo, não o teria feito se soubesse. Se soubesse.
Deita aos olhos à viúva, que está um bocado esbugalhada. Talvez esteja a ter um enfarte. O senhor doutor não se levanta.
O vigário fica de pé junto ao balcão, porque ele gosta de se convencer que nunca pára muito tempo. Pede uma cerveja, que ele é um homem simples, um homem de deus, um homem sem prazeres. Nasceu no Kansas, onde o céu é azul e as pessoas mastigam a ponta das espigas. Aqui nunca parece haver cor – e toda a gente tem aquele maldito hálito a tabaco.
O vigário tenta esconder o sotaque quando fala com as pessoas, para que o levem mais a sério. Tem os seus segredos, mas não deixa que se saiba, para se poder esconder. Não sabe como é não ser perseguido, e não ouvir todos os dias as histórias horríveis do seu rebanho, por detrás da rede de madeira do confessionário. Reconhece sempre as vozes por detrás das palavras mais negras.
Vê o detective e estremece. Se ele soubesse tudo o que o vigário sabe, quiçá deixasse o seu emprego. O vigário, por sua vez, bebe para lhe passar. Que outro remédio conhece? Até o senhor doutor aprova, erguendo-lhe o copo de conhaque. O vigário cora, e murmura que não vai parar muito tempo.
O senhor doutor sabe que o vigário gosta de se convencer que nunca pára muito tempo.

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Música: "Paper Bag", Goldfrapp

domingo, 22 de março de 2009

That's Amore




When the moon hits your eyes like a big pizza pie
that's amore,
When the world seems to shine like you've had too much wine
that's amore!

Novo vício: "Skins", série britânica.
O Anwar (Dev Patel) e a Sketch (Aimee-Ffion Edwards) saem, com resultados extraordinários.
Side note: a Sketch está loucamente apaixonada pelo melhor amigo do Anwar, que é gay.

Ao menos deixei de ver Anatomia de Grey.

Retrato de um Noir, Detective&Viúva

O detective está sentado no canto, o chapéu pousado em cima da mesa, a gabardina atirada sobre a cadeira, as mangas da camisa arregaçadas pelos cotovelos e o cigarro preso nos dentes. Ele tira o cigarro nas cenas de crime, ao ver o sangue espalhado pelos lençóis brancos. Tem os papéis espalhados pela mesa, perdido de sono. Diz-se que já andou metido à porrada com todos os homens e metido noutros negócios mais sinistros com todas as mulheres. Enfiou atrás das barras metade dos criminosos da cidade – os outros teriam, talvez, algo a oferecer-lhe.
Ele vive um pouco na linha – alimenta-se dos cantos mais esbatidos das leis, deixa passar o que não o magoa e cerra os dentes quando lhe apontam os seus defeitos.
O revólver? Está enfiado no cinto, para que todos o vejam e saibam que ele não é de brincadeiras.
A viúva está sentada ao balcão, de vestido preto com uma racha escandalosa de lado e perna cruzada. Ninguém sabe exactamente o que ela faz no Bar às Riscas Pretas – afinal, ela pertence às festas no uptown, de copinhos afunilados e conversas frívolas. Fala-se que matou o marido, mas ela não liga a esses mexericos, brinca antes com as pérolas do colar e faz olhinhos ao senhor doutor.
O detective olha-a de relance. Já tiveram os seus encontros – foram fugazes. As manchas de sangue encontradas na sua roupa não eram certamente do marido, que fora alvejado por uma mulher que usava batom vermelho, que não era certamente o mesmo que pendia dos seus lábios. Quem se atreve a contestar, de qualquer forma, o detective?
Ninguém, senhor, ninguém.


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Música: "America", Razorlight

Retrato de um Noir

" A noite começa tarde no Bar às Riscas Pretas, no beco encalhado mais duvidoso de uma parte já bastante duvidosa da cidade. O ambiente no interior é avermelhado e enevoado, cheio do fumo dos cigarros e charutos nas mãos de todos os presentes. Nas paredes cobertas de traves de madeira estão retratos a tinta de saxofonistas dedicados e dançarinas delicadas dos Loucos Anos Vinte – para deixar um pouco de fantasia no Bar às Riscas Pretas, mesmo durante a Depressão.

O homem do bar está inclinado por cima do balcão, a limpar um copo com um pano que noutra vida talvez tenha sido branco. Tem manchas de licores no avental atado por cima da barriga, e metia conversa ocasional com uma das caras fantasmagóricas penduradas aos seus copos de bebidas ambíguas.

Tudo era como que a preto e branco. Durante a Proibição, o Bar às Riscas Pretas estivera sempre cheio de vida. Vendia licor e whisky (muito aguado), a mulheres vestidas de cores sumptuosas, rapazes de colete preto e lenço vermelho ao pescoço, com música a toda a hora e danças até ao raiar do dia. O homem do bar lembra-se desse tempo, mas já são noções idealizadas de risos e de sonhos. Diante dos seus olhos passam sombras – são novas sempre, e misturam-se as caras, já, no tremelicar febril das lâmpadas velhas.

Agora, o bar pertence aos vagabundos. Aos desperados da sociedade, de mãos calejadas e gargantas roucas, que fumam os seus cigarros e bebem para esquecer que bebem. O homem do bar não vê essas pessoas – vê antes os antigos, encostados ao gramofone, a passar o jornal de mão em mão entre risos e copos de vinho branco.

(...)
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Para o meu pai, que gosta das histórias com morcegos na capa.

Música: "Blues for Dixie", the Chieftains

segunda-feira, 9 de março de 2009

emportée par la foule

quando ouço a nossa canção
passam borboletas na minha
visão periférica.

ainda somos deuses
-sabe deus por quanto tempo
essa brincadeira vai durar-
com as oportunidades
do céu azul na palma da mão.

às vezes estou sozinha como
a solitária senhora parisiense
na linha do céu nova iorquino:
presa tão longe de casa,
numa antítese ao seu apelido.

abrem-se-me os olhos
com as ventanias.
são as janelas de uma casa
mais antiga do que eu,
com as portadas amarelas.

os aviões quando voam
não batem as asas.
são de outro estado de
existência - podem voar
por pura força de vontade.

quando ouço a nossa canção
os meus dias são diferentes.
vejo os teus olhos (de súbito)
como se os visse do fundo
do poço das lembranças.

Shine On

Safety pins holding up the things that make you mine,

About your hair? You needn't care,
You look beautiful all of the time.

"Shine On" - The Kooks