domingo, 29 de março de 2009

Retrato de um Noir, Médico&Vigário

O senhor doutor está sentado a uma mesa, a fumar um cachimbo, pensativo e sem falar com ninguém, excepto a empregada de mesa, que passa de vez em quando, com o decote escabroso e os saltos altos, a perguntar se ele precisa de outro conhaque. O senhor doutor tem o consultório instalado no cimo de um prédio de tijolo castanho no centro da cidade. O homem do bar passa lá para os filhos levarem as vacinas – o senhor doutor faz um desconto. O homem da mercearia vai lá comprar os comprimidos da tensão da esposa – o senhor doutor faz um desconto. O carteiro leva o cão porque o veterinário está fechado – o senhor doutor não cobra nada.
O senhor doutor não pagou a renda este mês.
Ainda assim, bebe. É o remédio que lhe ensinaram as décadas, o conhaque, independentemente da faculdade de medicina. E, quando entrara, de olhos brilhantes a querer salvar o mundo, não o teria feito se soubesse. Se soubesse.
Deita aos olhos à viúva, que está um bocado esbugalhada. Talvez esteja a ter um enfarte. O senhor doutor não se levanta.
O vigário fica de pé junto ao balcão, porque ele gosta de se convencer que nunca pára muito tempo. Pede uma cerveja, que ele é um homem simples, um homem de deus, um homem sem prazeres. Nasceu no Kansas, onde o céu é azul e as pessoas mastigam a ponta das espigas. Aqui nunca parece haver cor – e toda a gente tem aquele maldito hálito a tabaco.
O vigário tenta esconder o sotaque quando fala com as pessoas, para que o levem mais a sério. Tem os seus segredos, mas não deixa que se saiba, para se poder esconder. Não sabe como é não ser perseguido, e não ouvir todos os dias as histórias horríveis do seu rebanho, por detrás da rede de madeira do confessionário. Reconhece sempre as vozes por detrás das palavras mais negras.
Vê o detective e estremece. Se ele soubesse tudo o que o vigário sabe, quiçá deixasse o seu emprego. O vigário, por sua vez, bebe para lhe passar. Que outro remédio conhece? Até o senhor doutor aprova, erguendo-lhe o copo de conhaque. O vigário cora, e murmura que não vai parar muito tempo.
O senhor doutor sabe que o vigário gosta de se convencer que nunca pára muito tempo.

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Música: "Paper Bag", Goldfrapp

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