sábado, 25 de outubro de 2008

Rien Ne Va Plus

Não és tu – sou eu.

As coisas acabaram entre nós numa terça-feira e eu soube-o muito antes dele, apenas pela maneira como ele olhou para mim.
Estávamos sentados numa mesa de café redonda, daquelas de bistrot parisiense, na esquina customária, cada um com o seu fino, eu a dar voltas ao anel que ele me tinha dado, e ele a torcer entre os dedos uma revista.
Não falávamos. Sempre que eu me queixava dos nossos silêncios ele dizia, com o sorriso benevolente de uma mãe para uma criança, que era porque já não precisávamos.
Eu achava que era porque ele – ele – já não precisava de mim.
Chamei-o finalmente pelo nome dele, gasto na minha língua, antigo nos meus olhos. Foi aí que soube que a electricidade se tinha esvaído, que as nossas mãos nunca se tocariam da mesma forma, que nunca haveria mais noites – daquelas. Água da luxúria, por que razão não vens lavar-me?

Esfrega a minha epiderme, arranca-me. Não és tu – sou eu.

Não me acelerou a respiração, ter-me apercebido subitamente deste facto, nem alterou o meu ritmo cardíaco.
Sou fria.
Ele ainda pediu outro fino, fumou um cigarro nos seus dedos experientes de vício e nos seus dentes amarelos de teimosia. Observei os seus movimentos, as suas delicadezas, as suas cortesias que eram mentiras. Insistiu em pagar o que eu tinha bebido e fomos para casa no carro dele, tão velho, com um cheiro intenso a tabaco e a noites – daquelas. Ele nunca pára nos sinais vermelhos. Desta vez, eu não disse nada. Sou fria.

Brilha em mim, sol, queima em mim, sol, esfrega a minha epiderme, arranca-me.

Nessa noite pedi-lhe para sair, e calcei os meus sapatos vermelhos. Luz da vaidade, por que razão deixas cair esse holofote na minha figura? Peguei-lhe na mão que tinha o comando da televisão, sem esperar qualquer calor. Não havia nenhum.
Ele disse que não. Era uma palavra habitual. Tudo nele era, agora habitual. As pernas abertas, a mão no bolso, a camisola de mangas arregaçadas e o arco suave do pescoço, que eu tocara com as pontas dos dedos como se toca num tecido.
Mas eu tinha calçado os meus sapatos, tinha posto batôn, e penteado o cabelo muitas vezes. Ele olhou para mim e não viu isso. Já não via nada disso, nunca, só via uma figura, um cabide, um par de olhos brilhantes – vivos mas por pouco, e vidrados como os olhos dos peixes no supermercado.
E eu queria ir dançar.

Ardo agora.

Arrumei cuidadosamente a minha escova de dentes e deitei a dele pela janela. Enfiei um dos sapatos dele no canteiro da minha orquídea moribunda, o outro serviu para testar a potência do autoclismo. Não tinha descarga suficiente, pelo que tirei o sapato e experimentei com a t-shirt dos Rammstein.
Demorei no total quinze minutos a recolher a maioria dos meus vestígios do apartamento. Queria trazer os electrodomésticos, que, afinal, tinha sido eu a pagar, mas preferi atirar para o bolso as chaves do carro, uma troca equivalente. Fiquei na ombreira da porta da sala durante alguns momentos, com a mala na mão, enquanto o Fernando Mendes perguntava ao cavalheiro do fato azul se queria ir à Roda da Sorte. Ele não olhou para mim.

Não sou eu.
Nuvens, venham buscar-me. Encontro a redenção.

- Bem – chamei – vou sair.
Ele não tirou os olhos do ecrã.
- Ok, vemo-nos logo.
- Não sei – respondi, mas acho que ele já não me ouviu.
O ar era frio, e anestesiou-me a alma. Decidi que estava uma bela noite para andar a pé e, aproximando-me da grelha que dava para o esgoto, observei as chaves que puxei do bolso.
Fizeram um barulho absurdamente satisfatório ao atingirem o fundo.
A doçura da liberdade não tem qualquer comparação.

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Canção: "Patriarch on a Vespa" , Metric