sexta-feira, 5 de junho de 2009

Frame of Mind

O Vasco conduz como um louco fugitivo. Sempre lhe deram esse apelido, e não o incomoda -- gosta da ideia de ser o selvagem na linha preta de macadame, que tira o máximo de uma carrinha velha de hippies até ela fazer aquele barulho que deixa os passageiros assustados. A sua música será deprimente e haverão meias-luas negras debaixo dos seus olhos, derivadas de incontáveis noites ao volante, iluminado por menos que uma meia-lua.
Conduz como um louco, e esta noite foge. O seu pé está pressionado no pedal, a estrada estendida diante dele, ladeada por campos de girassóis, de pétalas voltadas para o solo como os olhos cansados dos peregrinos. O Vasco escolhe não olhar, fixa os olhos no caminho, como faria Orfeu. É também por causa desta comparação que o Vasco evita olhar para os que dormem no banco de trás.

As lembranças que tem são como um bando de pássaros que pode ser dispersado com uma palma, mas que se juntam de novo quando estás a olhar. Ele lembra-se da forma como um Tim de mãos pequeninas dizia o seu nome. Lembra-se da Sónia desmaiada e de uma garrafa partida de whisky. Lembra-se do telefonema da Alice, de um estremecimento a percorrer-lhe a espinha. De uma namorada chamada Maria e dos seus dentes bonitos e perfeitos, que lhe deixaram uma cicatriz no ombro esquerdo. Uma noite em Bragança coberta de neve, a chorar a ver o Pretty Woman -- possibilidades partidas. Ler Nietzsche, queimar as páginas.

Um passo em frente dispersa de novo os pássaros. Adeus.

As suas mãos apertam com força o volante, e depois abre a janela dois dedos e puxa de um cigarro, com as mãos peritas dos desesperados. Tem os dentes amarelados mas garante-se de que não está viciado -- é só para lhe manter a boca ocupada, não pode ser pior que pastilha elástica afinal. Um dos seus bolsos produz um isqueiro e a chama brilha sobre o cabelo da Alice no assento do passageiro como se, por um instante glorioso, todo fosse feito de fogo. No momento seguinte, é apenas uma brasa vermelha na ponta de outro cigarro.

O Vasco sente-se velho ao volante, como um pai que deixo passar uma vida de pólvora e mulheres bonitas e odisseias para tratar da mulher e dos filhos. Neste caso, a família indesejada é o único grupo de pessoas com quem encontrou uma ligação -- bem, eles e a Maria dos dentes bonitos. Com ela havia uma chama, mas ele queria amor de poesia e teatro, e ela queria amor de casacos de cabedal e carros descapotáveis. De alguma forma, os dois não eram compatíveis.

O Vasco pergunta-se por vezes o que teria acontecido se os dois tivessem ficado juntos -- talvez ele tivesse acabado o liceu, ido para a universidade, talvez se tivesse livrado de uma mãe que precisava dele e de quem ele não precisava, e arranjado um emprego, e uma vida.

Uma a sério.

1 comentário:

As vossas palavras às nossas palavras.