terça-feira, 27 de abril de 2010

saco de compras

esquecemo-nos um do outro com os anos, suponho. enquanto eu existia por detrás de um telescópio bem lá no alto e ela atrás de uma caixa de supermercado no fundo da escada que eu subira, nem sequer me lembrava dela, e admito-o embora sem orgulho.

só de me lembrar que antes podia segurar os seus cabelos nas minhas palmas e pensar que agarrava em mim próprio e nos meus sonhos nesses fios, e que ela confiava em mim e nos meus dedos, só de me lembrar disso vêm-me algumas lágrimas confusas que se prendem desconfortavelmente no meu nariz e, raras vezes, me embaciam as lentes dos óculos.

sei que não é ela quem me faz falta mas, talvez, algo em mim que perdi com o tempo e que já não consigo encontrar.

não é difícil um astrónomo tornar-se niilista e também não é difícil tornar-se um cristão devoto. dos meus colegas, uns ajoelham-se fervorosamente nas igrejas e outros choram entre copos de vodka pela insignificância das lágrimas e do vodka.

eu não me acho insignificante nem particularmente significativo. tenho o meu papel, e não tenho um papel maior por estar no telescópio do que ela na sua caixa a contar os trocos na palma da mão.

suponho que não sou niilista nem cristão porque não penso demasiado nas coisas.

penso, claro que penso, mas à noite, quando me começam a assombrar essas ideias mais extremas, acendo o candeeiro e vou lendo uns livros levezinhos do sagan ou de outro qualquer que me fazem sentir reconfortado, como se não precisasse realmente de ter uma posição para ter uma posição qualquer.

e quando o assunto vem à tona no trabalho entre amostras e análises vindas directamente de marte passando por alguns satélites estrangeiros, penso só em mim e nela, e nas linhas que já nos uniram há tantos anos e que agora continuam lá, invisíveis, tanto para mim como para ela.

digo que a esqueci não por não a recordar, mas por não me lembrar daquilo que sentia. lembro-me de sentir, dessas divindades que se erguiam nos meus olhos quando ela estava presente, e sei que a amei, o que quer que isso possa significar e sem lhe querer dar uma importância que não tem.

e um dia ao fim de tantos dias de me ter esquecido, perdido por entre as estrelas sem realmente lhes dar o fascínio que mereciam, encontrei-a.

no supermercado.

foi uma surpresa breve e que tentei esconder o melhor que pude.

- olá - murmurei.

- olá - respondeu, fazendo malabarismo com um sorriso que ora vinha ora ia. - tudo bem? -
passou a minha espuma de barbear pela máquina que faz barulho, lembrei-me de a ver por cima do meu ombro no espelho enquanto fazia a barba.

- sim - disse eu. as palavras soavam-me estranhas de súbito por saber quem as ouvia. apetecia-me falar outra língua qualquer que nenhum de nós conhecesse. - e tu?

- também. - as suas mãos pegaram num saco de farinha que também apitou ao passar na máquina, lembrei-me do brilho nos seus olhos plantados bem no meio do rosto enfarinhado. - continuas lá no observatório?

- sim - voltei. era uma sílaba estúpida. - continuo.

- já te decidiste? afinal não temos nenhum sentido ou todos os sentidos do mundo? - perguntou, abordando a minha dúvida, e eu pensei automaticamente nas linhas entre nós reestabelecendo-se, esticando e dando a volta aos nossos corpos bem próximos onde não podíamos ser separados nem por vácuo.
segurou entre os dedos fininhos uma embalagem de gel de banho, vi esses mesmos dedos a passear nos meus cabelos molhados com a frescura da relva cortada.

- não - respondi.

- 19,25 - disse ela, erguendo finalmente os olhos para mim e as suas pestanas encontraram-me surpreendido.
dei-lhe o dinheiro, ela contou os trocos na mão antes de mos dar.

- obrigada por escolher o nosso estabelecimento - disse talvez ironicamente nas minhas costas enquanto me afastava com o saco.

penso que ouvi, nos meus passos distraídos rua abaixo, o quebrar de alguns dos fios que nos uniam. no dia a seguir, ao passar a esfregona no laboratório, não pude deixar de perguntar a um dos cientistas o que pensava realmente acerca do niilismo e dessas coisas, ao que ele me deu uma resposta algo científica que não recordo e terminava com "tretas dessas".

vou à igreja todos os domingos, a tentar encontrar o sentido deles em mim, mas admito para mim próprio que não sei ainda onde está.

talvez um dia quando as mãos dela deixarem de me assombrar os sonhos eu possa acolher as mãos de outro, quiçá mesmo as de um deus qualquer.

1 comentário:

As vossas palavras às nossas palavras.