sábado, 29 de agosto de 2009

a ponte romana

Foram homens que fizeram esta ponte, há muitos anos, com trapos por roupa e suor a marcar-lhes as testas, a escorrer pelas costas, a empapar-lhes as mãos. Foram homens como nós que puseram pedra sobre pedra destas pedras polidas que pisamos os dois.
E quando a ponte era nova, eles ficaram os dois, maltrapilhos e pequenos, sentados nesta amurada com os pés a criar círculos sobre o rio, e falaram das estrelas como tantas vezes outros falaram, antes e depois -- mas para eles era novo.
Rebentaram as invasões e os tambores de guerra a fazer vibrar as folhas nas árvores novas. Eles eram já outros e ela perseguia-o pela ponte e pedia 'não vás não vás não vás', e rezava e rezava e prendia laços de oração nos ramos das árvores encantadas, para o ver de novo e inteiro a atravessar aquela ponte.
Tão cedo ele não voltou, mas apenas quando ela era uma rapariga ruiva e as invasões tinham acabado e quem permanecia eram os invasores. Eles beijavam-se à noite às escondidas na ponte onde se derramara o sangue inimigo deles mesmos noutros tempos.
A cantar pelas montanhas chegaram os loucos, com espadas inclinadas e religiões novas que no fundo eram as mesmas, versões tortas, diferentes, angulares daquilo que eles conheciam. Viram-nos chegar pela ponte, atravessando o vale, e ouviram mais tambores e mais alto do que alguma vez tinham ouvido, tão fortes que, se parassem, iria com eles qualquer batimento cardíaco. Beijaram-se de novo, sem se esconderem, e ele enterrou-lhe as mãos no cabelo castanho escuro.
Aconteceu então outro mundo igualmente sangrento, de vingança e de raiva e de revolta e de tirar de novo o que é nosso, essas casas, esse povo e essa, essa ponte, seus sacanas, com as vossas vidas inclinadas tão erradas e tão falsas.
E ele construía então igrejas com outros homens de ombros largos, paredes bem grossas para que eles não voltem a entrar. Ela sentava-se na ponte, terrivelmente só, a sonhar com uma vida maior e a baloiçar os pés sobre a água cristalina.
Na idade seguinte eles eram um segredo de pecado em esquinas escuras da cidade e beijos roubados às ombreiras das portas. cruzavam-se na ponte e fingiam não se ver.
A era da luz não trouxe luz à terra deles, que tantas vezes os vira nascer e por vezes partir. Mas foi nessa era que, pela primeira vez, os dois casaram e criaram descendência -- a menina brincava na forja do pai com olhos brilhantes e os dedos todos cheios de calos, o menino, de nariz arrebitado, lavava com a mãe a roupa no rio, e os dois atravessavam a ponte às gargalhadas com espadas inclinadas de madeira.
Vieram buscá-lo para um barco do infante, ao que ele, sem opção, se ergueu da cama e só levou uma sacola com um par de ovos cozidos e carne fumada, e os bolsos cheios de beijos.
Ela criou os meninos sozinha.
No tempo dos românticos era de novo ela quem o perseguia pela ponte, e ele vestia de preto da cabeça aos pés e chorava muito como não choram os homens, e atirava com infinitas folhas de papel (tão brancas!) pelo ar e para o rio e para o vale e para o céu, no seu próprio grito de guerra desesperado que já tantas vezes o bairro tinha ouvido e esquecido.
As máquinas invadiram as ruas e os químicos invadiram o rio. Fez-se outra ponte maior, mais bonita e mais durável, feita de ferro para passarem as máquinas. Ele sonhava em voz alta delírios de loucura, enquanto ela lhe depositava panos brancos, na testa suada do homem que tinha feito a igreja.
As histórias de amor são assim complicadas, especialmente quando ele é tão livre dentro da sua cabeça e tão desesperado por liberdade do lado de fora. E quando partiu o rei (monarquia já de si bem falsa) ele dançou um bailado estrangeiro pela ponte fora com ela pelos braços, e o bairro todo olhou-o de lado durante meses.
Terminadas as festas, guerra.
E terminada a guerra, outra cortina de trevas e silêncio, o que não o impedia de ser ele e dizer coisas tabu. Ela escrevinhava no café por entre a fumarada dos charutos dos homens e sorria-lhe quando ele passava debaixo da sua janela, todo enfarruscado e com as mãos dos bolsos. Ainda assim atravessam a ponte sem darem as mãos.
Desta vez ele já partiu. Tentara empurrar a cortina mas falhara e ela voltara a ficar sozinha, para ver bem-sucedidos os objectivos dele num glorioso dia vermelho todo feito de flores. Passa na ponte com um cesto de roupa debaixo do braço e vê-o lá encostado, o cabelo penteado para o lado e a boina do pai lá plantada, a sorrir de lado como se fosse a primeira vez que a via. Ela lava a roupa na fonte com um sorriso também, e vê-o nos olhos dos filhos. Uma das meninas é ruiva, e ninguém entende porquê.


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é um conceito que tenho na cabeça há muito tempo, e este resultado está longe de ser o final, mas decidi partilhar o estado actual do projecto, de qualquer forma.


bisoux*

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